Que grande destino reservaram pra vocĂȘ?
- Marina Pilato
- 19 de nov. de 2024
- 3 min de leitura

Andre Luiz Nunes da Silva
Advogado, Mestre em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR
A construção cultural em nosso pais foi idealizada no âMito das TrĂȘs Raçasâ. A noção de que a formação do Brasil se baseia na integração harmoniosa dos povos indĂgenas, negros e brancos, é uma ideia que permeia o imaginĂĄrio nacional desde o perĂodo modernista. Obras como Martin CererĂȘ, de Cassiano Ricardo, celebram essa integração de modo poĂ©tico, exaltando a uniĂŁo dessas etnias como o cerne da identidade nacional.Â
Com o tempo, essa perspectiva foi adotada por diversos setores, incluindo a cultura popular. Em 1972, por exemplo, o samba-enredo âMartin CererĂȘâ, da Imperatriz Leopoldinense, de autoria de ZĂ© Catimba, trouxe para o carnaval carioca a narrativa da uniĂŁo, consolidando o imaginĂĄrio do Brasil como um paĂs "cordial" e igualitĂĄrio.
"Vem cĂĄ, Brasil, deixa eu ler a sua mĂŁo menino, que o grande destino reservaram pra vocĂȘâ
âTudo era dia, o Ăndio deu a terra grande, o negro trouxe a noite na cor , o branco a galhardia e todos traziam amor, tinham encontro marcado pra fazer uma nação e o Brasil cresceu tanto que virou interjeição ... âÂ
Contudo, essa idealização romĂąntica e culturalmente rica nĂŁo reflete a realidade enfrentada pelas populaçÔes negras e indĂgenas. Em 1972, em plena ditatura militar, com vozes contrĂĄrias ao regime sendo silenciadas e a população negra mantida Ă margem, o regime politico fomentou o racismo institucional e a discriminação racial com forte intolerĂąncia Ă s causas e reivindicaçÔes por igualdade da população negra, refĂ©m das ilusĂ”es e benesses do mito da democracia racial.Â
Passados 52 anos, o racismo e a violĂȘncia ainda estĂŁo presentes. Tivemos avanços importantes, como a tipificação do racismo com crime, o Estatuto de Igualdade Racial e  polĂticas pĂșblicas governamentais. Na prĂĄtica, vivemos uma triste realidade: avançando para o contexto atual, os Ăndices de violĂȘncia e de exclusĂŁo social contra a população negra revelam uma realidade alarmante e desumana. Dados da Rede de ObservatĂłrio da Segurança (2024) indicam que, nos Ășltimos anos, uma pessoa negra Ă© morta em intervençÔes policiais a cada quatro horas, com negros representando cerca de 87,8% das mortes registradas, predominantemente jovens de 18 a 24 anos. Esse nĂșmero revela a gravidade da violĂȘncia racial no Brasil, onde a maioria das vĂtimas pertence Ă s favelas e periferias â 73% da população das favelas Ă© composta por negros, segundo o IBGE (2022). A discriminação racial institucional, evidente nas abordagens policiais e na ausĂȘncia de polĂticas pĂșblicas eficazes para esses grupos, reforça um ciclo de marginalização e exclusĂŁo.
Esse cenĂĄrio de violĂȘncia e repressĂŁo Ă população negra e perifĂ©rica contrasta duramente com a visĂŁo idealizada da miscigenação. As estatĂsticas revelam o fracasso de polĂticas de segurança pĂșblica e de proteção social, que nĂŁo conseguem proteger, incluir ou elevar essa significativa parcela da população. Assim, o "encontro marcado" para fazer uma nação, proposto poeticamente pelo samba-enredo, ainda nĂŁo foi plenamente concretizado. Ao contrĂĄrio, a lacuna entre a realidade e a idealização nacionalista Ă© gritante e revela um racismo explĂcito e contemporĂąneo. Ă evidente o contraste existente no plano educacional entre estudantes negros e estudantes brancos que cursam o ensino fundamental e mĂ©dio. A evasĂŁo escolar da população negra aumenta cada vez mais. Â
PolĂticas de reparação, como açÔes afirmativas, inclusĂŁo e direito Ă igualdade material, precisam avançar ainda mais.
Em um esforço para combater o racismo estrutural e criar oportunidades, polĂticas afirmativas, como as cotas, tĂȘm sido implementadas. Em 2024, o Brasil celebra o Dia da ConsciĂȘncia Negra como feriado nacional, uma vitĂłria importante do Movimento Negro e causa negra, comemorando Zumbi dos Palmares e reforçando a memĂłria da resistĂȘncia negra no paĂs. Apesar desses avanços, ainda hĂĄ um longo caminho para superar a desigualdade histĂłrica, e o Projeto de Lei (PL) 158 surge como uma nova proposta de ampliação das cotas raciais. O PL busca elevar as cotas raciais para 30% nos setores pĂșblicos e privados e incluir indĂgenas e quilombolas, reforçando a necessidade de inclusĂŁo de todos os povos originĂĄrios e marginalizados no projeto de nação brasileira.
Este projeto de lei simboliza uma tentativa renovada de unir os ideais do "Mito das TrĂȘs Raças" com a realidade brasileira contemporĂąnea. Ao ampliar as cotas, o Brasil poderia corrigir, ainda que parcialmente, as injustiças histĂłricas e contribuir para a construção de uma sociedade mais equitativa. Segundo dados do IBGE, 55% da população brasileira Ă© negra, e, portanto, qualquer polĂtica pĂșblica significativa deve incluir essa população, atendendo suas necessidades e respeitando seu direito de cidadania plena.